A cidadania é um conceito antigo que sofreu várias alterações no seu conteúdo ao longo do tempo. A tradição histórica reconduz o nascimento da qualidade de cidadão e da cidadania à antiguidade clássica, mormente à polis helénica do séc. V a.C., onde era definida através da contraposição do cidadão com os restantes membros da comunidade (os estrangeiros, os escravos e as mulheres) e da atribuição de um poder/dever de participação na vida política da cidade.
É desta relação com os negócios públicos da cidade (“civitas”) que se obtém a etimologia de cidadania, extraída do conceito latino “status civitatis”, que exprime um estatuto, um vínculo jurídico, do indivíduo com a comunidade politicamente organizada. A este conceito clássico de cidadania, Benjamin Constant, denominou de “liberdade dos antigos” que se caracterizava pela “liberdade – participação” nos negócios públicos, à qual era contraposta a “liberdade dos modernos”, cuja evolução liberal consagrou como “liberdade – autonomia”. Como refere o douto autor[1] “ (…) entre os antigos, o indivíduo, soberano quase habitualmente nos assuntos públicos, é escravo nos assuntos privados (…) entre os modernos, pelo contrário, o indivíduo, independente na sua vida privada, não é soberano, mesmo nos Estados mais livres, senão na aparência (…)”.
Na Idade Média, com a desagregação do Império romano e a atomização dos centros de poder, o vínculo jurídico de cidadão desaparece e dá origem ao vínculo jurídico de súbdito, que estabelece uma relação de subordinação entre dois indivíduos (o individuo soberano e o individuo subordinado).
No período moderno, e com o impulso dado pela revolução francesa (1789), o conceito de cidadania sofre uma nova transformação e sobrepõe-se ao conceito de súbdito, deixando esta relação de ser apenas de subordinação e reintegrando a participação no seu núcleo permitindo, dessa forma, substituir um dos sujeitos da relação (o individuo soberano) pela nova figura jurídico – política do Estado.
É com a emergência do Estado moderno que assistimos à configuração actual do conceito de cidadania. Pois, o Estado moderno define-se também por um princípio de pessoalidade: o povo, ao qual se destina o seu poder[2].
Esta nova fase é marcada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que distinguiu direitos do homem, enquanto tal, ligados ao conceito de direitos originários com origem no direito natural, de direitos do cidadão, o indivíduo vivendo em sociedade.
A cidadania é hoje um “vínculo jurídico – político que, traduzindo a pertinência de um indivíduo a um Estado, o constitui perante este num particular conjunto de direitos e obrigações”[3]. Este vínculo é essencial e estrutural para o Estado porque através dele se define o povo de um Estado. É igualmente estrutural para as pessoas, resultando assim a sua definição como um direito fundamental reconhecido no Direito Internacional pelo artigo 15.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) (DUDH), que consagra o direito à cidadania e o direito a optar por uma cidadania.
O cidadão de um Estado distingue-se de um estrangeiro pela natureza dos direitos e obrigações que estabelece com o Estado. Contudo, actualmente essa diferença tem-se esbatido mas com a manutenção de um núcleo essencial reservado ao cidadão nacional, correspondente a direitos políticos, conforme é possível exemplificar pela redacção actual dos artigos 4º e 15.º da Constituição da República Portuguesa (CRP):
ARTIGO 4.º
(Cidadania portuguesa)
São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional.
Artigo 15.º
(Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus)
1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.
3. Aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa com residência permanente em Portugal são reconhecidos, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso aos cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidentes dos tribunais supremos e o serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática.
4. A lei pode atribuir a estrangeiros residentes no território nacional, em condições de reciprocidade, capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de órgãos de autarquias locais.
5. A lei pode ainda atribuir, em condições de reciprocidade, aos cidadãos dos Estados membros da União Europeia residentes em Portugal o direito de elegerem e serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu.
A figura jurídico-política de cidadania e a qualidade de cidadão estão muito presentes ao longo da leitura do texto da CRP.
A primeira aparição ocorre no artigo 4.º, onde se consagra quem é cidadão português através de uma norma remissiva para a lei e para as convenções internacionais – numa técnica legislativa distinta da utilizada nas Constituições precedentes (com excepção da Constituição de 1911[4]), – não distingue cidadãos originários de cidadãos não originários consagrando assim a igualdade entre cidadãos independentemente da forma de aquisição da cidadania[5].
O conceito aparece em seguida com várias formulações: “todos os cidadãos” no artigos 12º, 13º, 35º, 44º, etc.; “os cidadãos” nos artigos 14º, 29º, n.º6, 45º, etc.; e “todos” nos artigos 20º, 26º, 27º, 36º, etc. Em todas elas o cidadão “designa genericamente o detentor da qualidade de cidadão português”[6].
Esta categoria genérica é passível de divisão em função da natureza de certos direitos. Deste modo, há direitos que têm uma exigência de idade (artigos 49º e 122º), há direitos que pela sua natureza são reservados a categorias de cidadãos, como os trabalhadores (art. 51º) ou os jovens (art. 70º), e, por último, há direitos exclusivos dos portugueses (art. 15º, nº2) e direitos exclusivos dos estrangeiros (art. 33º, nº8)[7].
O cidadão é assim o principal destinatário das normas da CRP, conforme resulta do artigo 12º. que consagra o princípio da universalidade: e é também um direito fundamental, por força dos artigos 26º, nº1 e nº3 e 16º, nº1 que permite a recepção do artigo 15º da DUDH.
ARTIGO 12.º
(Princípio da universalidade)
1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.
2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.
E é também um direito fundamental, por força dos artigos 26º, nº1 e nº3 e 16º, nº1 que permite a recepção do artigo 15º da DUDH:
- Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade.
- Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.
O regime da cidadania está estipulado na Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, alterada recentemente pela Lei Orgânica n.º 2/2020, de 10/11), podendo esta ser originária ou derivada e é admitida a sua perda através de um acto de vontade do cidadão que seja cidadão de outro Estado. Sobre as recentes alterações legislativas à lei da nacionalidade, o artigo do Dr. Matheus Volani, no link….
Os cidadãos portugueses que residem no estrangeiro usufruem, nos termos do disposto no artigo 14º, de protecção por parte do Estado e de todos os direitos e deveres que não sejam incompatíveis com a ausência do país.
Os direitos políticos dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro[8] sofrem algumas alterações por força dessa ausência do território nacional. Assim, quanto ao referendo o artigo 115º, nº12 estabelece que são chamados a pronunciar-se quanto a matéria “lhes diga também especificamente respeito”, são eleitores do Presidente da República[9] (art. 121º, nº1), são eleitores e podem ser eleitos para a Assembleia da República, mas nas eleições regionais e locais apenas podem participar os cidadãos residentes nos respectivos territórios (art. 232º, nº2, 239º, nº2 e 240º, nº1).
Por fim, uma pequena nota para o conceito de cidadania europeia que se tem desenvolvido desde o Tratado de Maastricht (1992). É uma cidadania complementar à cidadania dos Estados – membros da União Europeia e tem o seu regime consagrado actualmente no artigo 18º e seguintes do Tratado de Funcionamento da União Europeia[10]. É uma cidadania com base nas ideias do universalismo kantiano, mas que nesta fase continua a ser mais simbólica que efectiva, faltando ainda o desenvolvimento estadual à União para que se estabeleça verdadeiramente um vínculo jurídico de cidadania.
[1] cit. CONSTANT, Benjamin – De la liberte des anciens comparée à celle des modernes. in Cours de Politique Constitutionnele, IV, Paris, 1820, pág. 241 e segs. (apud MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. Preliminares. O Estado e os Sistemas Constitucionais. Tomo I. 7ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. pág. 54.
[2] cf. Ibidem. pág. 93 e segs.
[3] cit. RAMOS, Moura R. M. – A Cidadania. in Polis – Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado. Lisboa: Editorial Verbo, 1983. pág. 824.
[4] A Constituição que consagrou a I República, implantada a 5 de Outubro de 1910.
[5] cf. CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa Anotada: Artigos 1º a 107º. 4ª ed. rev. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. pág. 328
[6] cf. Ibidem.
[7] cf. Ibidem.
[8] Resultam da Revisão Constitucional de 1997.
[9] A construção dos universos eleitorais para o Referendo e para o Presidente da República não coincidem, pois um é definido em razão da matéria do referendo e o outro através de uma norma geral. cf. MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. Estrutura Constitucional do Estado. Tomo III. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. pág. 131.
[10] Para um desenvolvimento deste conceito. cf. MACHADO, Jónatas E. M. – Direito da União Europeia. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. pág. 242 e segs.
